Reprocessamento de Material de Empréstimo

O reprocessamento de conjuntos, cedidos em regime de empréstimo às unidades de saúde, constitui, actualmente, um dos maiores desafios nos Serviços de Esterilização Centralizada (SEC). Este regime é habitualmente conhecido por “material à consignação” ou, simplesmente, “consignados”.

É comum as unidades de saúde públicas ou privadas solicitarem, por rotina, aos distribuidores por grosso, conjuntos específicos de instrumentos cirúrgicos para determinada especialidade, com contra consumo de implantes ou outros.

Esta necessidade das unidades de saúde resulta de um conjunto diverso de factores:

  • o avanço tecnológico constante, quer das técnicas cirúrgicas, quer dos dispositivos médicos, sobretudo nas especialidades de ortopedia, plástica e neurocirurgia;
  • a impossibilidade das unidades de saúde apresentarem um inventário capaz e suficiente para fazer face às necessidades cirúrgicas;
  • os procedimentos cirúrgicos realizados com baixa- frequência ou, por oposição, programas operatórios com várias intervenções agendados para o mesmo dia, sem que a instituição possua o número de conjuntos necessários para a sua execução;
  • o constrangimento financeiro que, entre outras consequências, tornam incomportáveis a aquisição dos conjuntos, em definitivo, devido aos custos elevados desse material cirúrgico.

Esta prática, que apresenta claros benefícios, preocupa, porém, cada vez mais os profissionais de saúde, porque apresenta riscos potenciais para os doentes e para si mesmos, atendendo que os hospitais assumem a responsabilidade ética de assegurar que todos os conjuntos de instrumentais estejam isentos de contaminação, seguros para a sua utilização, cumprindo os princípios inerentes à segurança do doente com o firme propósito de contribuir para a prevenção das infecções associa- das aos cuidados de saúde

COMPETÊNCIAS E REALIDADES

Por forma a atingir-se o desejado nível de coordenação, é necessária a definição clara de competências a cada uma das partes intervenientes neste circuito.

Antes de mais, é da responsabilidade exclusiva dos SEC das unidades de saúde o reprocessamento de todos os instrumentos cirúrgicos de uso múltiplo, aplicando as suas melhores práticas no reprocessamento, de modo a minimizar os potenciais riscos de infecção. Esta competência decorre do conjunto de requisitos e características que, segundo as normas, legislação e boas práticas, os SEC devem apresentar ao nível de conhecimentos e experiências, assim como, dos equipamentos, infraestruturas e recursos humanos disponíveis.

O empréstimo de instrumentos cirúrgicos apresenta, contudo, constantes desafios aos SEC devido, essencialmente, à interferência com o funcionamento e dinâmica de trabalho dos mesmos. O planeamento e coordenação entre cirurgiões, bloco operatório (BO), SEC e as empresas fornecedoras dos instrumentais apresenta-se assim como sendo de extrema importância para que os SEC possam garantir o reprocessamento destes instrumentais de forma segura e em tempo útil.

Adicionalmente, e em concordância com estes princípios, o material à consignação deve ser entregue directa e exclusivamente nos SEC, seguindo o fluxo estabelecido para o reprocessamento, ou seja, serem rececionados na área de descontaminação para serem sujeitos ao reprocessamento completo. Caso os mesmos sejam entregues no BO, é da responsabilidade deste reencaminhá-los imediatamente para o SEC para serem sujeitos ao seu completo e adequado reprocessamento.

Relativamente às empresas, é da sua competência fornecerem instrumental e implantes em bom estado, seguros para manipulação e uso, assim como toda a informação técnica subjacente a todas as etapas do seu reprocessamento garantindo deste modo a segura e adequada utilização desses dispositivos médicos, considerando o fim a que se destinam. Este fornecimento deverá ser feito até à véspera da data da cirurgia para que se possa proceder à verificação atempada, em fase da inspecção, de todos os itens e componentes que fazem parte do conjunto cirúrgico relativamente à sua integridade/ alteração de estrutura. Caso se verifiquem dispositivos não conformes, p.ex. dispositivos de corte e brocas sem integridade do fio de corte, pinos com as pontas dobradas, provas partidas ou fissuradas, roscas de encaixe moídas, entre outros, que requeiram a sua substituição por parte das empresas, a entrega atempada dos instrumentais evitará o adiantamento ou, in extremis, o cancelamento desnecessário da intervenção cirúrgica.

Contudo, é usual verificar-se que as empresas não conseguem disponibilizar atempadamente o instrumental solicitado por forma a ser reprocessados apropriadamente nos SEC.

Contudo, é usual verificar-se que as empresas não conseguem disponibilizar atempadamente o instrumental solicitado por forma a ser reprocessados apropriadamente nos SEC.

Verificando-se estas situações, o impacto na eficiência do reprocessamento e no fluxo de trabalho do SEC é evidente: dependendo o reprocessamento completo – ou seja, lavagem, inspecção, montagem, lubrificação, embalagem, esterilização e documentação para efeitos de rastreabilidade – de tempo, recursos técnicos e humanos para que sejam cumpridas as normas, recomendações e as boas práticas publicadas, fica todo este processo colocado em causa, reflectindo-se também na eficácia do reprocessamento do material residente. Tendo os profissionais do SEC plena consciência sobre a urgência do material, verificam-se, frequente e adicionalmente, pressões de alguns profissionais de saúde (resultantes de alguma iliteracia na área do reprocessamento) para acelerar a entrega dos instrumentais no BO, resultando deste modo num aumento do nível de stress das equipas do SEC, o que potencia o risco de erros e falhas de ordem vária.

É também da responsabilidade das empresas de material disponibilizar os conjuntos cirúrgicos (através de requisições das instituições), fazerem-se acompanhar das respectivas guias de transporte, memórias descritivas dos conjuntos e instruções de fabricante (IFU).

Observa-se, contudo, que muitos instrumentais emprestados circulam entre instituições com um “certificado de descontaminação”. Apesar de ser uma prática requerida legalmente, este “certificado” apenas serve para efeitos de transporte, não podendo, por isso, ser os instrumentos considerados seguros para o processo de esterilização terminal sendo que somente instrumentais correctamente limpos podem ser esterilizados! A não observação e respeito por este princípio basilar do reprocessamento de dispositivos médicos compromete seriamente o bem-estar e segurança do doente. Considerando, ainda assim, que o certificado de descontaminação é seguro e suficiente, desconhecem, no entanto, se os dispositivos circularam em carrinhas transportadoras com os requisitos e condições necessárias para o transporte de instrumentos cirúrgicos limpos e esterilizados.

FORMAÇÃO

Acrescente-se a isto o risco potencial a que os profissionais do SEC estão expostos devido a um processo de descontaminação desadequado, tornando os dispositivos impróprios para manipulação, função essencial desta fase do reprocessamento. Neste campo, é necessário reforçar a formação, com actualizações frequentes, dos funcionários do SEC, por forma a sensibilizar e consciencializar os mesmos para estes factos.

QUESTÕES NORMATIVAS

A única indicação oficial relativamente a esta questão é a Circular Informativa do Infarmed nº 170/ CD de 2008 em que, devido à sua natureza jurídica, as medidas nela apresentadas não são de carácter legalmente obrigatório, ainda que remeta para a directiva DIR 93/42/CEE, transposta para a legislação nacional pelo Decreto-Lei nº 273/95 (entretanto substituído pelo Decreto-Lei 145/2009, que estabelece as regras a que devem obedecer a investigação, o fabrico, a comercialização, a entrada em serviço, a vigilância e a publicidade dos dispositivos médicos e respectivos acessórios, transpondo a Directiva Europeia 2007/47/CE), esta de carácter obrigatório, referindo também o conjunto de normas a serem observadas durante o reprocessamento de dispositivos médicos de uso múltiplo – como é o caso do material cirúrgico à consignação.

Da mesma forma, a ausência de padrões de procedimento em Portugal para a área da esterilização levanta desde logo um problema: as práticas e os procedimentos não são uniformes entre as instituições pelo que, nos materiais à consignação, sendo frequentemente compostos de materiais com um grau de complexidade considerável e, assim, requerendo vários passos de limpeza, os técnicos são obrigados a recorrer exclusivamente à sua formação e experiência. Da mesma forma que estes são factores importantes para o cumprimento criterioso das boas práticas, caso tenham sido adquiridos de forma não tutelada por quem de direito e exclusivamente empírica, poderão estar na base de graves más práticas. De facto, esta situação é a que mais frequentemente se observa.

Cabe, como é natural, às administrações e entidades competentes garantir que os funcionários recebam a formação necessária para o desempenho das suas funções. Infelizmente, nem sempre estes corpos dirigentes têm presente a necessidade de actualização constante, como é evidencia- do pelo facto do último curso para Responsáveis dos SEC, ministrado pela ARS Lisboa e Vale do Tejo, ter sido realizado no ano de 2006. Considerando a renovação de pessoal que ocorre naturalmente nos diversos serviços das unidades de saúde, e sendo os responsáveis do SEC o reservatório natural de conhecimentos e boas práticas, verificar-se-á certamente uma carência de conhecimentos ao nível das chefias dos SEC que terá, logicamente, reflexos nos procedimentos destes serviços, com concomitante falta de atenção para com a questão do material de empréstimo.

CONCLUSÃO

Em conclusão, para que esta problemática pudesse ser, no mínimo, atenuada, seria necessária uma abordagem em várias frentes:

  • na vertente da formação de todo o pessoal afecto ao SEC, por forma a identificar as irregularidades existentes;

  • na vertente das empresas, pela produção de legislação clara, que inclua padrões de transporte e manuseamento e gestão responsável dos conjuntos cirúrgicos, e subsequente fiscalização, assim como, pela sensibilização elementar relativamente ao risco associado por práticas menos corretas;
  • pela parte dos corpos administrativos , de coordenar todas as unidades envolvidas (BO, SEC, Grupos Coordenadores Locais dos Programas de Prevenção e Controlo de Infecção e Resistência aos Antimicrobianos, Gestão de Risco, Medicina Ocupacional) por forma a uniformizar os procedimentos estabelecidos e dar uma resposta uniforme das unidades prestadoras de cuidados de saúde, a título individual ou colectivo.

 

Autoria: Enfermeira Chefe Flora Moura e Carvalho Hélio Crespo