RESUMO
Estudou-se a viabilidade da descontaminação ambiental no âmbito hospitalar com vapor seco de peróxido de hidrogénio produzido por sistema VHP® ARD Steris. Foi aplicado numa Sala de Operações e num quarto de Isolamento com adufa, ambos da Unidade de Queimados de um hospital geral. As exposições foram, respectivamente, de mais de 400 ppm durante 40 minutos e mais de 250 ppm durante 89 minutos, sendo suficientes para a mudança dos múltiplos indicadores químicos e a esterilidade mostrada nos indicadores biológicos de Geobacillus stearothermophilus. Em suma, o ensaio foi satisfatório de acordo com as previsões efectuadas.
INTRODUÇÃO
No final do século XVIII, começaram a introduzir-se diversas substâncias químicas para combater epidemias infecciosas, que se julgava serem transmitidas pelo ar de acordo com a “teoria miasmática”. Os produtos eram supostamente tóxicos e, por conseguinte, eram aplicados em instalações fechadas, tais como o interior dos barcos, e sem pessoas. Um procedimento semelhante foi levado a cabo por Lister, no final do século XIX, em ambiente cirúrgico mas já de uma outra forma, através da emissão de vapores de fenol no decurso de uma intervenção, tentando criar um ambiente asséptico, por forma a evitar as frequentes infecções cirúrgicas. Naquele momento, começava a ser conhecida a natureza microbiana de algumas infecções e a ser introduzidos outros procedimentos preventivos, com base científica e ensaia- dos em laboratório (vacinas, soros imunes, etc.)
A partir dos anos 70 do século XX, começa a estudar- se em profundidade a epidemiologia das infecções nosocomiais e a sua prevenção. Aplicam-se produtos desinfectantes emitidos para o ar em locais hospitalares, com ou sem a presença de pessoas, segundo o grau de toxicidade associado a esses produtos. Tratava-se de soluções de combinações fenólicas e aldeídicas várias, dispersadas por aquecimento, a partir da sua forma líquida, formando gotas que vaporizavam as superfícies contaminadas. Este procedimento era designado por “fumigação”. Uma aplicação peculiar consistia na descontaminação do equipamento médico de grandes dimensões, tais como as incubadoras usadas em neonatologia, dentro de grandes câmaras onde era introduzido gás formol que posteriormente era neutralizado com amoníaco.
A grande vantagem associada à fumigação era a impregnação, mais ou menos completa, das superfícies expostas. O inconveniente era a toxicidade dos componentes dos produtos utilizados, cada vez mais conhecida e estabelecida, tais como valores TLV e PEL, estudados pelas agências norte-americanas especializadas em exposição laboral. Para além disso, o equipamento de descontaminação não dava informação suficiente sobre o nível de concentração alcançada pelo desinfetante. Estes problemas associados fizeram com que a descontaminação por difusão aérea fosse preterida pela desinfecção manual de superfícies através da adição de desinfectantes aos produtos normais de limpeza comum, apesar da dificuldade e morosidade requeridas em certas superfícies (tectos, paredes e recantos). A dificuldade era acrescida quando se tinha de descontaminar o equipamento médico cuja complexidade era crescente.
Era urgente encontrar algum tipo de substância que tivesse problemas de toxicidade mínimos e uma maior capacidade de penetração nos poros e aberturas das superfícies que aquela oferecida pelas partículas líquidas (gotas) dos desinfectantes utilizados. Em 1984, para dar resposta a este problema, realizou-se um ensaio sobre biodescontaminação por peróxido de hidrogénio como principio activo, uma molécula química muito conhecida, cuja principal novidade consistia na forma de apresentação como vapor seco, que se demonstrou eficaz para determinadas concentrações e tempos de exposição ao ar 6-11. Inicialmente, começou por ser utilizada em salas expostas a um elevado risco de infecção, tais como as salas brancas da indústria farmacêutica e alimentar, laboratórios, entre outros.
Chegou a pensar-se que esta inovação se poderia estender ao ambiente hospitalar onde continuavam a ocorrer HAI (Healthcare Associated Infections). No entanto, alguns micro-organismos causantes como p.ex. o Acinetobacter baumannii, persistiam em diversas superfícies hospitalares, desenvolvendo uma resistência elevada aos antibióticos e por conseguinte colocando o paciente susceptível à infecção. A necessidade de atender a potenciais vítimas de pandemias transmitidas por via aérea, aparecidas no decurso da última década, motiva novas aplicações nos centros de assistência em caso de emergência epidemiológica. A concepção da biodescontaminação de recintos hospitalares e sanitários (ambulâncias, centros geriátricos, etc.) de uso continuado e de grande dimensão torna necessária a sua avaliação através de um programa com indicações bem definidas e uma planificação adequada ao cumprimento das mesmas.
Como exemplo da complexidade destes programas, passaram a ser tomadas em consideração a tipologia das salas e espaços de acordo com o risco associado, o tipo de pacientes atendidos e as práticas clínicas a que eram submetidos. Para além das áreas ocupadas por pacientes potencialmente propagadores de infecções por via aérea, como sejam os tuberculosos 18 (que requerem isolamento), começam a ser consideradas as exigências requeridas, em número e diversidade crescente, por doentes imunodeficientes e especialmente vulneráveis, atendidos em unidades de cuidados críticos (cuidados intensivos, queimados, transplante de medula óssea, transplantes de órgãos, neonatologia, etc.), e aos submetidos a intervenções cirúrgicas. Em casos mais restritos, procede-se ao isolamento protector (PE: protective environment).
Ao longo do tempo, a eficácia germicida do vapor seco de peróxido de hidrogénio frente a patogénicos resistentes, inclusivé priões, vai sendo comprovada, atingindo níveis estéreis em determinadas condições de concentração, tempo de aplicação e termo-higrométricas ambientais. Mas a sua aplicação está somente comprovada na indústria alimentária e farmacêutica onde a sua utilização é vulgarizada. Sem duvidar da sua acção antimicrobiana equivalente em outros lugares, preconizam-se soluções para o meio sanitário assistencial e hospitalar, sob a forma de esterilizadores a baixa temperatura e biodescontaminação ambiental. Com relação a esta última, torna-se necessário comprovar a sua viabilidade perante uma multiplicidade de factores recentes: materiais de construção utilizados, tipo de instalações, equipamentos, circuitos eléctricos, dispositivos electrónicos, disposição, etc., sendo que a sua compatibilidade com estes meios físicos assume particular relevância no que diz respeito à segurança do paciente e do pessoal circulante (contenção e controlo de toxicidade). Estas variáveis devem ser tomadas em consideração na organização, programação, planificação e desenvolvimento da aplicação.
A fim de medir o comportamento do vapor seco de hidrogénio como descontaminante e desinfectante até um possível nível de esterilização nas áreas hospitalares críticas, realizou-se um ensaio em salas cirúrgicas da Unidade de Queimados de um Hospital Geral de construção nova, controlando os parâmetros físicos da aplicação e a resposta antimicrobiana em esporas bacterianas.
MATERIAL E MÉTODOS
O estudo realizou-se no Hospital Universitário Rio- Hortega de Valladolid (Espanha), na Unidade Clínica de Grandes Queimados, com uma construção recente, por forma a valorizar o procedimento de biodescontaminação de salas de uso periódico intermitente (bloco operatório) e de quartos, de uso continuado, para pacientes de alto risco, desocupados. Esta unidade dispõe de ar-condicionado próprio que foi desligado durante o ensaio, mantendo-se ligados os restantes dispositivos electrónicos. Foi estabelecido um estado de alerta para em caso de emergência, poder ser parado o teste e utilizada de imediato a sala de operações.
Ainda na mesma unidade de queimados, foi realizado um ensaio acerca de um quarto de pacientes críticos internados, em isolamento com adufa incluída para protecção. Novamente, o ar-condicionado próprio foi desligado durante o ensaio, mantendo-se ligados os restantes dispositivos electrónicos.
O equipamento de biodescontaminação utilizado para emissão do vapor seco de peróxido de hidrogénio, (Figura 4) foi o Sistema de Biodescontaminação (VHP®ARD BIODESCONTAMINATION SYSTEM) da STERIS, composto por uma unidade móvel geradora de peróxido de hidrogénio vaporizado VHP® 1000 ARD, com painel PLC B&R 420, que controla as funções e permite um interface com o usuário e os dispositivos externos, porta Ethernet para conexão com PC e porta USB para transferência de dados de medida para a memória externa e os acessórios abaixo descriminados:
- 2 sensores externos de concentração de H2O2 (SENSING UNIT);
- 1 circulador de ar (ROOM CIRCULATION UNIT);
- 1 arejador auxiliar (AUXILIARY AERATION UNIT).
- Cartuchos desumidificadores (DRYER): 1 de tamanho pequeno utilizado no bloco operatório e 1 grande utilizado no quarto de isolamento;
- 1 regenerador de cartuchos desumidificadores (DRYER REGENERATOR).
Colocaram-se 2 ventiladores para favorecer uma difusão homogénea dos gases no meio interno.
A unidade de VHP® 1000 ARD contém um sistema sonoro e visual para alertas (qualquer alteração na programação inicial do ciclo), bem como toda a informação do ciclo, mostrando tempo e concentração de peróxido de hidrogénio que é registada num PC portátil externo e guardada em dispositivo USB.
O germicida utilizado foi o consumível Vaprox®, registrado no Infarmed com o número 58.779-4. Aliás, o sistema VHP® e Vaprox® estão registados na Agencia Española de Medicamentos y Productos Sanitarios, e no Infarmed e estão em conformidade com a normativa vigente sobre germicidas. O produto apresenta-se em garrafas de 900ml, com uma solução concentrada de peróxido de hidrogénio a 35%.
As etapas que compõem o ciclo de biodescontaminação são desumidificação, condicionamento, descontaminação e arejamento.
Durante o processo de desumidificação o ar circula através do cartucho desumidificador reutilizável até 34m3/h, com um fluxo de circulação de ar de 14 a 34m3/h.
Na fase de condicionamento o peróxido é injectado e vaporizado sem chegar ao ponto de condensação. O sistema produz uma injecção de peróxido de 2 a 12g/min. Na fase de descontaminação propriamente dita a concentração necessária no ar é mantida.
Na fase de arejamento, o ar é recirculado através de um catalisador de peróxido, que se decompõe em oxigénio e água, até que a sua concentração atinja menos de 1ppm. Segundo a OSHA: PEL (8h) de peróxido de hidrogénio, 1ppm (0,0014mg/L). Os resíduos produzidos carecem de toxicidade, estando compostos por vapor de água e oxigénio. O vapor de água é eliminado pelo sistema de secagem.
O equipamento foi deixado em contacto e acesso superficial. Do interior de qualquer das salas testadas foram somente retirados os componentes celulósicos de forma a evitar o consumo excessivo de peróxido. Todas as saídas de ar-condicionado foram tapadas com lâminas de PVC sobrepostas e coladas com fita adesiva impermeável bem como outras zonas susceptíveis à entrada de ar. Todas as áreas foram sinalizadas com placas e demarcadas com fita branca e vermelha para impedir o acesso, excepto nos casos de emergência devida- mente controlados e autorizados.
Os ciclos foram iniciados no horário da manhã em todos os locais testados, que ficaram fechados e com o equipamento de desinfecção operacional até ao início da manhã do dia seguinte, altura em que os espaços foram abertos e as condições iniciais repostas, tendo decorrido cerca de 20 horas desde o início até ao fim das operações. O período de tempo em que os locais se mantiveram fechados é muito superior ao necessário para que se completem as 4 etapas que constituem a biodescontaminação: desumidificação, condicionamento, descontaminação propriamente dita e arejamento; sendo este tempo o mais aproximado da realidade dadas as possibilidades operacionais de um ambiente hospitalar e as especificidades laborais. Obviamente, o excesso de tempo de permanência do equipamento de descontaminação deve-se a uma fase prolongada de arejamento e subsequente.
Fixou-se uma concentração de peróxido na “fase de estagnação” de 400ppm e 30 minutos no bloco operatório, e de 250ppm e 90 minutos no quarto de isolamento. Estes ciclos são validados para obter uma redução da carga microbiana de 10-6.
O início e monitorização do ciclo foram efetuados através de um PC portátil conectado por cabo à unidade ARD. Todos os dados capados pela unidade e sensor externo à unidade puderam ser visualizados no portátil, sendo que toda a informação obtida ficou registada no dispositivo de armazenamento USB, nomeadamente toda a informação do ciclo, tempos detalhados e níveis de concentração de peróxido de hidrogénio.
Foram tidos em consideração os planos de descontaminação e a documentação MSDS com limites de exposição. Foram empregues os EPIs necessários à preparação dos locais, manipulação do equipamento, do Vaprox® e dos indicadores químicos e biológicos, nomeadamente batas, óculos de protecção e luvas.
Foram ainda controladas as possíveis fugas de peróxido para o exterior com unidades Dräger Pac III. Para esta situação preparou-se ainda um equipamento autónomo de respiração Dräger X- PLORE 6300, filtro Dräger X-PLORE Pal 40.
Por forma a medir os resultados da operação foram empregues indicadores químicos e biológicos, oferecidos pela STERIS. Os indicadores químicos expostos ao peróxido de hidrogénio foram os STERIS VHP® Indicator, concebidos especificamente, colocados em inúmeros pontos do local (esquinas superiores e inferiores, pontos-chave de propagação por contacto, lugares de difícil acesso, etc.). Os controlos biológicos foram os Spordex® constituídos por esporas de Geobacillus stearothermo- philus Apex Log 456 TriScale Indicators com cargas de 104, 105, e 106 de cada tipo, colocadas em locais estratégicos onde, normalmente, se encontra o paciente. Utilizaram-se ainda controlos biológicos, distribuídos em séries com cargas de 104, 105, e 106 em dois locais do bloco operatório e dois no quarto de isolamento. Os meios de crescimento dos indicadores biológicos foram incubados por um tempo mínimo de 5 dias a 56-60ºC, controlando o seu crescimento por mudança de cor.
RESULTADOS
As concentrações de vapor de peróxido de hidrogénio no ar do bloco operatório alcançaram resultados. O ponto mais alto aproxima-se dos 500ppm, e superam 400ppm durante 40 minutos. Utilizou-se o cartucho de desumidificador pequeno.
Descreve-se a curva de concentração de peróxido de hidrogénio no quarto de isolamento para protecção de queimados. Observa-se que o ponto máximo de concentração se situa em 375ppm e que o tempo total em que a concentração supera 250ppm é de 89 minutos. Utilizou-se o cartucho desumidificador grande. Estes valores devem-se ao facto de que a programação do ciclo inicial (30 minutos a 400ppm) ter sido modificada automaticamente pela unidade ARD na fase 2 (90 minutos a 250ppm) por não ter alcançado os níveis de concentração. Com 90 minutos a 250ppm, procedeu-se ao cancelamento manual da fase 3, passando diretamente para a fase de arejamento. O nível de H2O2 medido no final do ciclo e ao entrar na sala foi de 2ppm medidos com o Dräger Pac III passando a 0ppm imediatamente após a abertura do local e consequente arejamento.
Em coerência com o registado graficamente, todos os indicadores de exposição ao peróxido de hidrogénio mudaram de cor, comprovando uma exposição suficiente. Todos os indicadores biológicos de concentração diversa, 104, 105, e 106 de esporas de Geobacillus stearothermophilus, depois de um período de incubação de cinco dias a 56ºC, não apresentaram crescimento bacteriano.
COMENTÁRIOS
De salientar, que a eficácia do sistema VHP® ARD já havia sido comprovada, com êxito, em ocasiões anteriores, em locais hospitalares. Neste ensaio em particular destacam-se inúmeras vantagens, entre elas, a eficácia germicida demonstrada, atingindo níveis estéreis, e a inocuidade do método tanto para o meio ambiente como para os materiais e pessoas. A simplicidade do processo químico, no qual não são produzidas moléculas intermédias e as moléculas finais são tão naturais como o oxigénio e a água, contribuem para estes resultados e evitam a humidificação das superfícies. A compatibilidade com os equipamentos de alta tecnologia médica também é outro factor muito importante uma vez que a sua presença é maior nas áreas críticas hospitalares e incluem circuitos electrónicos que exigem precauções elevadas. Por outro lado, grande parte destes equipamentos apresenta uma estrutura complexa e praticamente inacessível a uma desinfeção manual. A crescente preocupação para com os pacientes em condições criticas e a selecção microbiana dentro dos meios de assistência faz com que a descontaminação ambiental, no âmbito sanitário, tenha toda a legitimidade e possa, inclusive, em situações emergentes, ser a solução radical para extinguir surtos epidemiológicos, que de outra forma, se tornariam um problema persistente.
De salientar, que em relação à regulamentação de suporte que regula esta tecnologia no sector hospitalar, é maioritariamente muito recente, sobretudo no que concerne a ambientes interiores, tendo no máximo 2 décadas e em condições mais restritas, as das “salas brancas” já mencionadas.
Ainda que a historia dos hospitais conte já com mais de 2 milénios e as suas condições higiénicas uma preocupação constante desde o início, a maior colectânea de documentação técnica e especializada nesta matéria surge numa época mais recente. Depois das recomendações inovadoras na área da biosegurança por parte das SEMPS- PH e INSALUD, de 200031, surgiram também os standards norte-americanos de ASHRAE, a Norma UNE 100713 (2005) 32 e os Guias de CDC (2003, 2007), para citar somente algumas das mais relevantes. Todas elas perspectivando a protecção do paciente, sem esquecer das mais tradicionais elaboradas do ponto de vista laboral, por entidades de renome internacionais, tais como a ACGIH ou NIOSH, ou em Espanha o INHST. O controlo de infecção nos blocos operatórios foi-se estabelecendo de forma decidida, e em geral, alargou-se a todo os locais críticos hospitalares como consequência da recente normativa UNE 171330-4, específica sobre “áreas controladas” dentro dos espaços sanitários.
CONCLUSÃO
À vista dos resultados obtidos, a técnica ensaiada é viável e recomendada para o meio hospitalar, resolvendo problemas de flora residente, com níveis de redução de até 106.